Torra brasileira
Disclaimer: Retirem os de menor da sala. É +18.
Foi em uma escadaria, aos moldes da adolescência, mesmo que meu corpo já somasse alguns anos a mais e quantidade de hormônios a menos para aquele tipo de coisa. Teve gosto de café aguado, do jeito que americano gosta, um leve aroma de hálito de cigarro, mãos que prendiam a minha cintura e pernas moles, ainda que lábios quase inseguros sobre o terreno desconhecido.
Durou o tempo que precisou durar. Eram quinze minutos marcados no cronômetro para a pausa, um lanche e um cigarro, espaço esse que não contemplava beijos roubados entre seus funcionários, intimidades que se costuravam em escadas pouco utilizadas. Não houve língua, ou intensidade que me fizesse esticar o cronômetro que apitava no celular, e ele me olhou desconcertadamente quando, ao se separar de mim, percebeu a série de regras que rasgara no instante em que se precipitou em minha direção. Se ele poderia assumir os riscos de uma infração nos degraus mais escuros de uma escadaria pouco visitada, eu tinha fichas demais para apostar em um jogo do qual sairia como única perdedora. Ele pertencia àquelas terras, eu era apenas nuvem passageira. Nunca raiz.
Ouvi um pedido de desculpas que saiu em voz sussurrada, sua boca ainda tão perto da minha, lábios rosados contraídos em sinal de vergonha pela impulsividade. Traços de uma vergonha, daquilo que não consegue – e nem precisa – ser controlado. Soube, da minha parte, que não ficaria ali, fadado a um instante cronometrado para não desagradar chefe que não gosta de ver mesa desarrumada. “Na minha casa, ou na sua?”, perguntei, em rompante de ousadia que não acontecia com frequência. Ele passou os dedos desajeitadamente pelos cabelos, que um dia já foram loiros e eram cortados de um modo irregular, escondendo a testa proeminente. “Não tenho muita privacidade”, confessou. “Na minha, então”, e nos acertamos.
Fantasiei mais rodadas daquela enquanto atravessava os vãos entre as mesas do escritório, quando o reparava com o olhar sobre mim. Recebia um sorriso, sempre um sorriso, embora não como ele fizera das tantas outras vezes em que nos encontrávamos daquele jeito no meio do expediente. Havia insinuações, três pontos que me levavam a todas as possibilidades sobre o que ele poderia fazer comigo sob meus lençóis, naquele espaço que pedi emprestado para tornar meu. Como seria seu beijo se não houvesse um alarme anunciando o fim da pausa, suas mãos com cinzas de cigarro, o seu toque com um pouco mais de firmeza.
Olhava para a tela do computador, mesmo que minha atenção estivesse no outro ponto do escritório. Sentia que era igualmente observada, vigia feita sob discrição, abaixo do olhar duro e, nem sempre, atento dos gestores, que pouco incentivavam relações cordiais entre pares. Na mesa dele, havia um pequeno pote de café de torra brasileira, presente meu. Eu lhe dera em agradecimento, já que fora o primeiro nativo a me receber tão bem naquela empresa, e disse que era para ele aprender a tomar café de verdade. Ele debochou até levar o primeiro gole. Percebeu que o Brasil lhe caía bem sobre a língua. Me segredou que tinha curiosidade para mais sabores e me pediu para que lhe ensinasse uma palavra em português. “Saudade”, disse apenas para me passar na frente do gringo. “Só existe no português”, expliquei. “E o que significa?” Não consegui dizer que era o mesmo quando ele me dizia tchau no fim do expediente.
Ele não tinha nada que o tornasse especial a olhos comuns. Eu me atraíra por seus sonhos bonitos. Queria ser ator, fazia o terceiro expediente ser dedicado à arte e chegava ao escritório no dia seguinte com os olhos afundados em olheiras. Ia às aulas, atuava em uma ou outra peça de curta duração – quando muito, se arriscava no stand up comedy. Não era a qualquer um que ele segredava, cuidadoso como era com suas próprias paixões. “Nunca sei o que vão fazer com essa informação”, me explicou. Eu o entendia, e compartilhei sobre os textos que amontoava na internet, com a esperança de alguma editora reparar em mim. “Nunca vai acontecer”, afirmava em voz alta, que era para me convencer mais rápido. Eu não somava números atraentes para reverter em vendas, apenas palavras que jamais seriam julgadas por seu mérito. “Para mim, você não é um número. É o infinito e todo o seu conjunto.”
Sua aparência era ordinária. Extremamente magro, alto, tinha ombros curvados e uma postura que o dia a dia na frente de um computador pouco colaborava para melhorar. Os olhos eram azuis, daquele tipo que incomoda, grandes e expressivos, maçãs do rosto proeminentes, face angulosa. Ele era, em si, todo anguloso. Desenhado e pensado para ser um incômodo, e nem mesmo ele parecia confortável sobre seus próprios ossos. Não sei ao certo quando pensei pela primeira vez como seria beijá-lo, sugar seus lábios cheios e rosados. Às vezes, ia além e deixava a curiosidade ser mais ardilosa: como seria vê-lo sem o casaco, a camisa? Em quais regiões eu encontraria pêlos? Nas axilas, na área central do tórax? No trajeto que ia do pé da barriga a áreas mais sigilosas? Quantos sinais existiriam em sua pele, nesses espaços escondidos aos olhos? Entre os beijos, ele precisaria de uma pausa para respirar, ou seguia direto, inspirando entre o deslizar da boca? Seria tímido como se apresentava no dia a dia, ou sustentaria uma postura mais firme de si, como quando estava nos palcos? E como seria a sua barba, com algumas falhas, arranhando a pele? A minha pele?
Não mandei suas fotos para minhas amigas brasileiras, certa de que não queria ouvir comentários sobre sua aparência simples, sem extravagâncias. Guardei para mim sentimento que crescia, que deixava as mãos suadas, que eu tentava esconder entre um riso e outro quando almoçávamos juntos, no modo rápido e prático dos americanos. E passei o dia com os pés trêmulos dentro dos tênis durante o expediente em que senti os seus lábios pela primeira vez, a ânsia de ir para casa crescendo, agigantada no peito, nas mãos que não encontravam paz, no baixo ventre, que se contorcia à espera de convidado.
Eu não fazia o tipo que gerava desejo em outros olhares. Era reservado a mim, corpo acomodado por roupas tamanho 48, o cargo de eterna amiga, nunca hierarquia superior. Minhas medidas extrapolavam expectativas de companheiros, que desejavam parceiras dentro de desenhos mais difundidos como fonte de prazer. Eu era “bonita de rosto”, porém nunca um conjunto completo que valesse a pena o investimento entre minhas pernas. Eu tinha barriga, curvas, celulites, estrias, cicatrizes de tempos em que não fui bondosa com minha própria carne, mas que ainda ansiava por contato externo, por explorador astuto à procura daquilo que também me deixava em estado de cobiça. Ele parecia interessado. Um dos poucos que acenou um sinal verde em minha direção. E naquele dia, todas as vezes em que duvidei da sua intenção, minha pele pálida e anêmica suando em ânsia, eu voltava ao beijo na escadaria, ao dedo firme sobre a minha cintura.
Em casa, foi ao café em que recorri em primeiro lugar. O banho veio depois, acompanhado por perfumes leves, cremes, um vestido romântico que custara tão pouco na Shein, mas que me vestia tão bem. Deixei o cabelo, escuro e ondulado, solto, descendo às costas, e mantive os óculos ao rosto, certa de que queria vê-lo nos detalhes, nos defeitos e nas perfeições que apenas a intimidade revela. O cheiro do café subiu, pedaço de Brasil em solo que tão pouco apreciava quem vinha do sul. Lembrar de casa era afirmar, também, que aquela história se desenrolaria em páginas contadas, início, meio e fim. Que eu não fosse ingênua, que não me apegasse – demais.
A campainha tocou em horário avançado, mas foi com expectativa que o atendi à porta. Mãos nos bolsos do casaco escuro, camisa vinho que trazia cor a um ponto tão monocromático à sua figura, jeans e tênis desgastados. Ele prendeu a respiração ao me ver, eu sorri, sem saber o que fazer com os dedos. “Fiz café”, anunciei, por falta de fala melhor. “Brasileiro?”, ele estava interessado. “Sempre.”
E o boa-noite veio no formato das suas mãos em meu pescoço, a boca na minha, seu corpo sendo o contrapeso que me empurrava para dentro do apartamento, um quitinete vagabundo que cabia no orçamento. Foi beijo de verdade, dado com gosto, longe de escadas escuras, de minutos roubados de empresas que não são adubo para jardim florescer. Não, isso não. Em minhas fronteiras, me deixei ser ponto de investigação, da curiosidade que tão pouco surgia em horário de expediente. "É isso o que eles ensinam nessas aulas de teatro?" Ele riu contra a minha boca, e eu não soube quais foram seus professores.
Foi no sofá, porque não havia tempo para as pequenas coisas. Deitada sob seu corpo, sentindo sua mão subir pela minha coxa, por debaixo do vestido, minha mente flutuou. Ele nunca falou sobre relacionamentos anteriores, e jamais transpareceu ser alguém com longo histórico de amantes. Mas sob o crivo de lábios tão bem treinados, me perguntei quantas pessoas, moças e rapazes, compartilharam noites ao seu lado, vivências que justificassem tamanha sabedoria. Demonstrei resistência quando senti seus dedos no fecho do sutiã. “Muita informação?”, ele perguntou. “É só que…”, existiam histórias que eu não queria contar em livros de enredos mais bonitos. Espelhos para onde evitava olhar, lojas que nunca tinham minha numeração, médicos que jamais davam um diagnóstico preciso, ainda que entregassem a receita da saúde em formato de um único número. Refletia isso nas pouquíssimas mãos de quem quis abrir minhas roupas por mim, de quem quis estudar meus pedaços com curiosidade mais demorada. Ele sorriu. “Só se você quiser. Mas estou interessado desde que você entrou no escritório pela primeira vez, com aquela blusa azul com estampa de flor.” “Você se lembra disso?” “Eu me lembro de muitas coisas sobre você.”
Não fui ensinada a levar outros corpos à minha cama senão o meu próprio, explorado por aquilo que punha comida à mesa. Sozinha, não me arriscava a me desbravar, ora sem energia, ora sem alimentar a curiosidade necessária para os primeiros passos, tão básicos para quem cruza a fronteira do crescer. Mas ali, sob seus dedos, me rendi, sua boca deixando um caminho de saliva muito bem traçado, que ia da parte de trás da orelha ao ponto de encontro dos seios. Entre minhas pernas, fiz dele rei e senhor do pequeno pedaço do sul que eu era, eterno verão para quem só conhecia neve. Fiz inglês e português serem único dialeto, e nos tornamos versados na linguagem que se construía entre dois únicos falantes, longe dos olhares interessados dos linguistas.
Me dei o direito de tracejar caminhos entre os sinais na sua pele sem cor, ao molde gringo, e ri quando ele murmurou, quase sem força, sua própria forma de falar “gringo”. Green-go. Ele marcou território com os dentes, visitando meu íntimo como velho conhecido da casa, e senti que lágrimas se acumularam em meus olhos. Não de tristeza, longe disso. Não versávamos sobre tristeza naquela faixa de tempo que decretamos por nossa. Eu me perguntava, sim, por onde ele andou nos dias em que minha cama ficou vazia, e que tipo de experiência era aquela que me foi tão negada. E, mais ainda, lágrimas caíam pela pequena morte, o eu que padecia alheio ao que um corpo devidamente amado era capaz de viver.
Do sofá à cama, ao sofá novamente, o café esfriou. Em dada hora, exaustos de tanto estudo, nos aconchegamos um no outro – ele, passando os dedos pelas minhas costas despidas, eu tateando os pêlos que habitavam o seu peito. Depositei um beijo na sua face, na região onde a barba falhava, e roubei um sorriso seguido de outro beijo – mais um, de tantos que eu ainda tomaria para mim.
“Café?”, perguntei, certa de que seria necessário uma dose extra de energia, mesmo que o sono se avizinhasse. Não me espantei com a pergunta que veio em seguida:
“Brasileiro?”
Eu sorri. Era história que tinha começo, meio e fim. Mas de uma ponta a outra, eu faria questão de inserir mais enredos, alongar páginas e colocar vírgulas. Até lá, nenhum ponto final.
