Marinado ao molho de vidro
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Não posso negar, eu adorei o vídeo. Ainda que os protestos indignados ante ao discurso declamado tenham sua razão para ocupar tantas publicações na internet, nem sempre se vê personagens caricatos desfilando tropos assim, tão desavergonhados. O rosto redondo, que faz lembrança ao de Zac Efron, mesmo com certa distância; o sotaque marcado das áreas baixas do país; a firmeza das palavras, das ideias, toda uma coesão que acena ao exagero, como se toda a montagem de menos de dois minutos existisse para isso, para ser assunto em rede social.
Conseguiram, afinal. Vi gente falando no LinkedIn o clássico “bater palma pra maluco dançar”, o que não acho de todo mentira. Porém, não deixo de ficar fascinada. Se um texto meu viesse com tamanha soma, editores reprovariam. Como falei, caricato até demais.
Não quero dar nomes, mesmo que o dele estampe matérias e esteja na boca de tantos comunicadores. Quero a separação da realidade para encarar o assunto com a mesma surpresa que tive quando me chegou, um deslocamento, quase uma ficção, um personagem que gabarita muitas qualidades de um estereótipo típico a romances que ainda procuram pela maturidade. Quero, também, me ater a partes do discurso, objeto do meu fascínio, que conseguiu me roubar um sorriso sincero, ainda que o riso não tenha sido o objetivo principal da mensagem. Não me desculpo pela minha espontaneidade, porém. Depois que sai de seu interlocutor, o texto é do mundo, para ser desconstruído e refeito ao paladar de quem o recebe.
O vídeo é conciso, nos termos certos para a mensagem que se propõe a passar. Nele, o protagonista da nossa malfadada narrativa é o entrevistado de um mesacast, uma atualização do bom e velho programa de auditório, pensado para as demandas da claque da nova década. Usa um óculos de armação, quadrado, sequestrado por esse tipo de figura para trazer estilo, finesse. Ele afirma com convicção: “não contrato esquerdista”. E destila uma série de clichês para quem, como ressaltei acima, gabarita o estereótipo do tipo. Classifica pessoas de determinado espectro político com “mimizentas”, em linguajar tão rico quanto a conta bancária de um dos membros da sua equipe ao fim do último dia útil do mês. Profere palavras de baixo calão para reforçar suas ideias, que consistem em afirmar o quão seus “colaboradores”, termo que não uso sem uma razão aqui, abraçam a ideia de sua empresa, saindo da firma às 23h e batendo o ponto novamente às 8h do dia seguinte; seu desprezo pelo conceito do home office, que pode acontecer aos finais de semana, já que, claro, o trabalho pode extrapolar as fronteiras da companhia; insiste que apenas 70h, 80h semanais é que farão um negócio prosperar.
Nosso protagonista, entretanto, é incansável. Mal faz pausas em sua explanação, alternando os momentos para respiro com palavrões, no nível “Enfodere-se”. “Cuidado com quem você bota para dentro da tua companhia”, alerta, soturno, findando suas ideias. Antes, porém, trouxe o créme de là créme do vídeo ao orientar que seus colegas, empresários que apreciam o mesmo estilo de óculos que um dia já fora coisa de gente brega, façam a avaliação de quem é aceito pelo RH. “Tem que ver se essa pessoa quer se desenvolver”, diz, ainda que não indique para onde, que não direcione. Pode correr o risco de ser um colaborador que “suga” e vai embora em “seis meses”. Explica: “Principalmente no início do negócio, tem que achar uma galera ali que tope comer caco de vidro contigo”.
Pura arte.
Como não caiu bem, este anti-herói digno de romances reprovados por grandes editoras vem a público exibir um sorriso muito satisfeito, debochado. “Pelo menos em um momento da vida vocês estão tendo algum trabalho, afinal de contas todo mundo é um bando de vagabundo que não gosta de trabalhar”, afirma em um sorrisinho, dentro de um carro que deve valer mais do que a soma do salário de um setor inteiro da sua empresa. Gosto da eloquência do protagonista, que entra em contradição com seu elogio narcísico, exposto para quem quiser ver: fotos em destinos pouco acessíveis, aventuras em Hong Kong, Deserto do Atacama, praias em que pode surfar, planar em esportes mais arriscados, quando não em atividades mais caseiras, como uma prosa ao som do violão, regada a alguma bebida cujo valor prefiro não imaginar.
As setenta horas dedicadas ao trabalho? Talvez sejam mais adequadas aos rostos que nosso protagonista sequer grava na memória, que não merecem ocupar algum espaço em sua aventura digna de elogios, inveja e inspiração.
Em 2018, estreava na Netflix o anime da Sanrio Aggretsuko, cuja premissa parecia muito contraditória aos desenhos fofos apresentados no trailer. Nele, uma panda-vermelha kawaii passaria por uma série de desventuras em seu ambiente de trabalho, habitado por outros animais também antropomorfizados, e descontaria suas dores e frustrações em um karaokê de esquina, berrando músicas de death metal em guturais pouco compreensíveis.
E se não bastasse um plot que soava muito absurdo, quem se aventurava a dar uma chance à produção da Netflix tomava um susto também. Porque as situações vividas por sua protagonista, Retsuko, eram igualmente absurdas. Um pouco exageradas? Talvez. Mas não tão impossíveis assim. Chefes que abusam de seu poder para pedir coisas inimagináveis, como exigir que lhe façam chá? Pessoas que, ao fim do expediente, chegam à sua mesa com pilhas de trabalho para que você dê conta até o dia seguinte? Entregar o sangue para a corporação? Hora extra? Contar até dez para ser uma ótima funcionária e não mandar ninguém para onde o sol não bate? Segurar o choro até o seu momento de paz, em que você conseguirá gritar “porco chauvinista!”? “Existe gente em situação pior do que você, deixe de ser ingrato/a/e!” Atire a primeira pedra quem nunca viveu isso.
Sim, Aggretsuko reflete muito uma realidade japonesa, o dia a dia de uma office lady (mulheres conhecidas por serem as “flores do escritório”, cujas obrigações envolviam até mesmo fazer chás aos seus colegas). Mostra também, através de uma workplace comedy, um lado sombrio do Japão, que tem nome em seu dicionário para as mortes advindas pela exaustão do trabalho: Karoshi. Só em 1978, 17 casos de Karoshi foram reportados (década inclusive em que o termo foi cunhado). Nos anos de 1980, porém, outra palavra surgiu: Karojisatsu, suicídio por excesso de trabalho e condições laborais estressantes. Para ambos os casos, as causas são diversas, e dá para imaginar algumas delas conhecendo o anime da Sanrio.
Ao longo das temporadas, que contabilizam cinco, os temas abordados em Aggretsuko se tornam mais densos, indo desde à desilusão corporativa à demissão em massa de funcionários em idades mais avançadas. Não é à toa que a produção caiu no gosto do público, em especial dos millennials, indo muito além da venda de brinquedos fofinhos por parte da Sanrio. Aggretsuko se apropria do absurdo para fazer rir, absurdo esse que existe em nosso cotidiano. É sobre trabalho, sobre vida e, fazendo referência ao vídeo do Meteoro Brasil sobre a obra, sobre “a inevitabilidade de trabalhar”. Porque sem isso não há sobrevivência.
Em Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han diz: “A preocupação pelo bem viver, à qual faz parte também uma convivência bem-sucedida, cede lugar cada vez mais à preocupação por sobreviver.” Mais para frente, complementa: “A vida hoje se transformou num sobreviver. A vida enquanto um sobreviver acaba levando à histeria da saúde.” Depois de anos com taxas elevadas, o desemprego entrou em queda, mas ainda há a informalidade rondando a vida do trabalhador brasileiro — além, é claro, da pejotização em massa. Ter a carteira assinada, hoje, é sorte. É ter girado a roleta e ter sido abençoado. Então, se você sofrer um assédio, por que arriscar tudo em denunciar? Contar até dez e dizer “estou ótima!”, mesmo tendo efeitos terríveis à sua saúde, parece a melhor solução. É o que Retsuko faz ao longo de muitos episódios de Aggretsuko. Para os momentos de estresse, nossa heroína millennial mantém seu microfone na bolsa, reservando minutos no banheiro para guturais em death metal em que pode desabafar e aliviar os dissabores de estar no escritório de contabilidade.
Penso se os “colaboradores” que trabalham para o nosso protagonista, destinando as 70h semanais das quais ele se orgulha tanto em afirmar serem necessárias, têm seus momentos Retsuko. Ou se acreditam fervorosamente nesse desenvolvimento profetizado por esse messias, anunciado em tantas Faria Limas por aí. Com a permissão para um paralelo muito grosseiro (e extremamente nerd), Pokémons evoluem após batalhas que tornam o monstrinho mais experiente, capaz de atingir a próxima etapa da sua trajetória. Crescem, ganham nova feição, cores, formatos, habilidades. Mas quais são as insígnias de batalha que um colaborador que faz “home office” no fim de semana acumula em seus bolsos? Resiliência que será cobrada mais tarde, em forma de comprimidos acumulados na mesa de cabeceira? Latas de energético e litros de café orgulhosamente exibidos como prova da dedicação a algo que sequer leva o próprio nome? A conta bancária, que pouco mudará ao longo dos anos?
Como cartomante, me amparo nas palavras de Anne Helen Petersen para traçar esse futuro. Em seu livro Não Aguento Mais Não Aguentar Mais (facilmente um dos meus favoritos de 2024), a jornalista destrincha o que deu tão errado no Sonho Americano, condenando uma geração inteira à síndrome de burnout. O paralelo com o Brasil é muito fácil de ser feito, mais ainda quando lemos matérias recentes, que explicam que a onda da demissão em massa na tecnologia dos últimos tempos tem origem nas big techs e na sua fidelidade aos acionistas. Acontece lá, acontece aqui. Não me espanta, portanto, que tenhamos importado tão cegamente o modelo estadunidense de enxergar o trabalho.
E, segundo Petersen, a capitular dessa história começa ali pelos anos 70, quando consultores de empresas, oriundos de universidades de elite dos Estados Unidos, passam a integrar quadros de organizações, levando consigo toda uma lógica de trabalho que não existia até então. O valor do funcionário, portanto, passa a ser medido através do quão ele se doava à organização, e gosto muito do termo que Giu Alonso usa na tradução do texto: devotava. Como se esse relacionamento se configurasse na esfera do sagrado.
Mas para onde se destina essa devoção do trabalhador? De acordo com a autora, para os bolsos dos acionistas e dos CEOS. Pouco disso se configura em benefício para quem faz a roda girar. Caso algum cordeiro se desvie do rebanho, sua ética do trabalho é questionada. Como nosso personagem principal o faz, em quase dois minutos de vídeo. Atribui características negativas àquele que se desvia do bando, quase como a Caverna de Platão exemplificada em discurso cristalino de empresário. Ele sai ganhando, mas não temos certezas quanto ao seu colaborador. C O L A B O R A D O R. Como Anne Helen Petersen afirma:
(…) exceto por uma intervenção significativa, que altere a psicologia da pessoa, uma vez que alguém iguale o trabalho ‘bom’ ao trabalho em excesso, essa concepção permanecerá com essa pessoa — e com qualquer outra sob seu poder — pelo resto da vida. (p. 181)
Por isso não me espanta que, na empresa do nosso anti-herói, vídeos de seus “colaboradores” trabalhando altas horas, pulando e festejando por estarem na ativa no terceiro turno, surjam nas redes. A produtividade excessiva é confundida com alegria. Muita coisa poderia acontecer à meia-noite, segredos sob lençóis, um sono tranquilo, ou mesmo uma esticada num reality show de qualidade duvidosa. A vida não acontece dentro de uma empresa. Nosso protagonista bem o sabe. É só olhar suas redes.
Mas, se este Narciso pode se dar ao luxo aos cenários quase futurísticos de Hong Kong, pratos marinados ao molho de vidro são servidos para quem paga suas passagens. Não são palavras minhas, e sim dele, que fala sobre os cacos que precisa comer nesse início de jornada. Quem estiver com ele, deve degustar do mesmo cardápio. Da minha parte, observadora que sou, fico com as minhas desconfianças sobre a paridade do menu. Porque meu protagonista, que gosta de se ver em fotos perfeitamente enquadradas, não partilha dos mesmos horários dos seus. Infelizmente, tenho pouca fé na resiliência da sua garganta.
PS — Como falei, nosso personagem principal veio com todos os estereótipos gabaritados. Uma sonegação de impostos aqui, umas opiniões ainda mais complicadas ali… E sempre bom lembrar que a Constituição Federal só permite 44h semanais, mas não quero alegar nada. Apenas ressalto que nem todo roteirista é muito hábil na criação de mundo. Uma pena.