Sitemap

Foi quase trinta mil

4 min readMay 24, 2024
Press enter or click to view image in full size
Photo by Nick Morrison on Unsplash

“60 livros pode não dizer muita coisa”, escrevi no Xuíter, “mas foram rodados com parte do meu FGTS, sabe? Significa MUITO pra mim.” No instante em que redigi essas palavras, havia acabado de esgotar os livros que comprara para o lançamento de Entre quadros e balões, que aconteceu em Fortaleza, dia 18 de maio de 2024. À ocasião do evento, não havia mais nenhum volume em mãos para os amigos e familiares que reclamavam o seu. Saí da cafeteria prometendo que encomendaria mais uma leva, para que pudessem pegar a edição comigo e, consequentemente, com dedicatória.

Em termos numéricos, 60 é uma quantidade de livros quase inexpressiva para um mercado acostumado a grande somas como o editorial o é. Os títulos que figuram a lista de mais vendidos da Veja, por exemplo, ocupam a casa dos milhares, mais de quatro dígitos sendo despachados aos montes em lojas todos os meses. Soa como se eu fosse um gatinho mirrado de rua perto de um majestoso Maine Coon em fase adulta. Nem minhas redes sociais são dadas a números de brilhar olhos. No Xuíter, por exemplo, uma das mais queridas por pessoas da área, estou longe de acumular mil seguidores, mesmo tendo conta há quase dez anos. No Instagram, tenho um alcance melhor, ainda que tímido o suficiente para que meu trabalho rode nas postagens de pessoas que não sejam intimamente ligadas a mim.

Ano passado, isso me deixou perto do colapso. Vale a pena investir em algo que, hoje, depende tanto desses tantos rostos que mal consigo identificar na rolagem infinita? Dessa validação social representada em um duplo clique, em uma animação de um coração surgindo e esmaecendo na tela de um celular? Como me farei ser lida se sou uma ninguém nessa cadeia que se apoia tanto em números, que se aglutinam em pessoas, em interações, em disputa por uma atenção que pende para quem tem maior vislumbre em terra de tanta informação junta? No início desse ano, a colunista Rebecca Jennings fez uma reportagem falando sobre a imposição da presença online a artistas, que necessitam entender de mecanismos confabulados por alguns bizarros do Vale do Silício para, com sorte, viabilizarem o próprio trabalho.

Nunca foi diferente com a literatura. Pouco mais de dez anos atrás, eu procurava manter um blog, o finado Café da Kami, para chamar a atenção de algum editor. Com um trabalho online, talvez eu valesse o investimento, que seria revertido em vendas. Não deu certo porque a vida fez suas exigências, e elas não contemplavam uma existência virtual que me tornasse, quem sabe, a menina dos olhos de alguma grande casa editorial. Isso nunca fez parte da minha realidade, sendo sincera. Nos poucos contratos que assinei, mais ganhei dores de cabeça do que alguma soma que valesse a pena na conta bancária. Traumas também fizeram parte desses acordos, com bloqueios criativos como parte dos juros sobre juros, rendendo mais do que investimentos na bolsa.

Permaneci invisível a muitos olhos, e nunca fechei vendas independentes que alcançassem mais de dez mil exemplares. Meu nome não esteve na boca de conhecidos do mercado, local ou nacional, pelos meus feitos gigantescos, que não envolvem somas impensáveis para quem faz um livro a ferro e fogo, ou mesmo um Jabuti na minha estante para exibir no Instagram. Mas, se isso me feriu por um tempo, hoje, com minha simbólica soma de 60 livros vendidos, tomo de empréstimo mais uma vez as palavras da colega, poetisa e professora Nadia Camuça, sobre métricas de sucesso: como se mede o sucesso de alguém?

Grandes conquistas merecem reconhecimento e celebração, mas as pequenas também valem uma festa com música alta, mesmo que a quatro paredes. EQB saiu porque juntei valores de uma rescisão, uma parte do FGTS e o seguro desemprego. Saiu porque contei com mãos de amigos, pessoas em quem confio irrestritamente para entregar meu texto, para pensar em conjunto. Saiu porque família e amigos compraram seus exemplares, e porque outros tantos disseram para eu deixá-los de sobreaviso sobre a nova leva de livros que encomendaria. Saiu pela cafeteria que lotei, muito além da capacidade permitida, com tanta gente que guarda retalhos do meu coração nos bolsos.

Não devo graças à carta de demissão que me foi entregue em uma quarta à tarde, dois dias depois do meu aniversário, com meu algoz ao meu lado, satisfeito pela humilhação que me submeteu após contestar minha inteligência. Devo a quem trabalhou comigo, quem acreditou que as palavras que escrevo em tinteiro valem a pena. Devo ao meu companheiro que, ao me ver sem rumo após tantas negativas de emprego, disse: “usa teu FGTS e roda Balões”. Foram 60 livros, mas valem por trinta mil. Só eu conheço o seu sabor, o seu cheiro e os ingredientes usados para moldar a massa que transformou tudo isso em algo que consigo pegar. Mercado algum vai me dizer o contrário.

--

--

Kami Girão
Kami Girão

Written by Kami Girão

Designer, escritora, crocheteira. Não necessariamente nessa ordem. Portfólio: https://www.kamigirao.com

No responses yet