Foi inútil derramar lágrimas sobre livros de Matemática

Kami Girão
3 min readOct 1, 2024

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Perdidas entre utensílios de cozinha de pouco uso, devo guardar uma ou duas velas para celebrações ocasionais, aniversários meus, do Diego ou de marcos que mereçam festejo. Penso nelas quando o calendário me mostra que estou prestes a completar dez meses de desemprego, com o espaço do mês – abril – em que trabalhei para um patrão que nem de funcionária se agradava. Talvez eu devesse acender uma dessas velas festivas, para enfiar em um bolo imaginário, feito a partir dos meus gostos que não podem ser atendidos – red velvet, com creme branco de ninho, massa amanteigada.

Em conversas com a Bel, lamentei: “se não for de ordem espiritual, deve ser porque alguém andou me queimando por aí”. Nada explica os contatos que não retornam, os currículos reiteradamente rejeitados, os sumiços sem recusas – ou alguém incinerou minha foto com gasolina, ou fizeram acordos com fantasmas que não consigo alcançar. Há quem vá desdenhar das minhas queixas, de uma ingenuidade que se firma sem embasamento científico, mas ninguém pode me criticar por procurar resposta para o que nunca vem redigido em e-mail, em mensagem do WhatsApp. Na falta delas, crio eu minhas próprias teses.

Sujei meu nome pela primeira vez nesse mês, misto de banco segurando o que é meu e falta de um sim que me traga alguma dignidade. A dívida vai correr e se agigantar, ao mesmo tempo em que meus tratamentos de saúde, que jamais foram poucos, precisarão ser deixados em banho-maria para um dia – sempre posto com artigo indefinido na frente, que é para marcar a distância do que se tem e do que nunca chega. Os bicos que pego, deus os abençoe, me ajudam a apagar pequenos focos de incêndio. Há, porém, do meu lado, certa arrogância ao arrumar mesas sob deboches de quem não me conhece, enquanto penso se foi para isso que estudei tanto. Se foi para me manter em pé, com o corpo em riste enquanto senhoras muito bem vestidas e perfumadas comem buffet negado aos peões, que chorei por notas baixas em Matemática, julgando e medindo meu valor por números que jamais me transmitiram, ou asseguraram, um futuro brilhante. Se foi para, no melhor cearensês, aguentar abuso de quem porta uma carteira de OAB, coisa mais fácil de falsificar, que lutei contra esta cabeça que nunca encontra paz, que sempre se distrai na hora de internalizar algo, que voa enquanto professor fala, teoriza, insinua.

Senti as lágrimas se aproximando quando expliquei ao Talles por que estava tão arrumada no lançamento da Bel na quinta, os ouvidos sensíveis protegidos por abafadores e a cabeça pensando nos diplomas acumulados em pastas no drive. Os pés doloridos, dentro de sapatos pretos de salto baixo, marcavam que não foi para cruzar os espaços de empresas que eu comprara calçados tão discretos e formais, como eu havia pensado meses antes, recém-saída de um episódio de assédio moral. Ninguém espera fazer “mesversário” de desemprego, mas há de se usar sapatos festivos quando se pode.

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Written by Kami Girão

Designer, escritora, crocheteira. Não necessariamente nessa ordem. Portfólio: https://www.kamigirao.com

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