Sitemap

Encerramentos de ciclos, EQB, alguns pensamentos

8 min readMay 25, 2024
Press enter or click to view image in full size
Foto: Tainá Cavalcante

Em alguma data perto do carnaval de 2006, e aposto muito alto que era carnaval, descobri que uma música que tocava na rádio e que eu gostava muito se chamava Last Kiss. A versão que eu escutava, geralmente transmitida em programas de flashback, era a do Pearl Jam. Eu não tinha curso de inglês à época e recorria a sites com traduções de letras para compreender o que era cantado, e muito me surpreendi que a melodia romântica se tratava, na verdade, de um relato sobre a perda de um amor.

Os anos 2000 foram uma experiência à parte, tempo em que a pirataria de músicas era uma constante para quem queria acessar alguma faixa mais difícil de encontrar pelas lojas oficiais, de preços salgados demais para bolsos tão jovens. Baixei Last Kiss no (não tão) saudoso Emule, gravei um CD com minhas seleções musicais, e esta figurava em primeiro lugar. Arranhei o CD de tanto uso e quanto mais ouvia, mais a ideia crescia na cabeça.

Em 2006, eu estava me recuperando do meu primeiro coração partido. Uma das minhas melhores amigas havia começado a namorar o também primeiro garoto de quem verdadeiramente gostei, e foi uma experiência um tanto quanto amarga para uma pessoa de treze anos. Eu precisava me expressar, compreender aquele sentimento esquisito, e Last Kiss veio como o curativo para a ferida. Digo isso porque, juntando com minha inclinação para a escrita, comprei um caderno brochurinha e redigi páginas e mais páginas de uma história sobre um triângulo amoroso, em que uma das partes havia falecido. Como diz a música. Por falta de inventividade, nomeei de Últimos Beijos mesmo.

Mas essa história sobre um relacionamento jovem, porém não menos complicado, acabou ficando por ali, no caderno de brochurinha. Nem chegou a ganhar um final. Coração sarado, era hora de procurar outros enredos.

O resgate inesperado e o efeito Fisheye

Press enter or click to view image in full size
Foto: Tainá Cavalcante

Por volta de 2013/14, escutei Last Kiss por acaso e todas as lembranças dessa malfadada história de amor retornaram. À época, eu findava a primeira versão de Fisheye, que ainda era dividido em duas partes — uma para o presente e outra para o futuro. Achei que, com as devidas adaptações, seria uma boa história para depois do trabalho com Fisheye, e ensaiei até mesmo um prólogo. Os personagens permaneciam os mesmos — Ian, Nara e, agora renomeada, Lizandra — , em um relacionamento que se tornara um pouco mais complexo à luz dos meus 20 anos. Se antes o meu objetivo era contar em que bases a relação entre Nara e Ian se firmava, excluindo mais Lizandra da equação, agora eu a trazia para o centro da trama, o fio condutor de todos os eventos da história. Ideias abarrotavam os meus cadernos, nada se perdia.

Minha história com Fisheye, porém, não foi a das mais felizes. Entre passar um ano e meio presa a uma agente literária, que prestava uma leitura crítica de “graça”, ser rejeitada por outra agência, cair no limbo com a primeira e ir para uma editora que não só não cuidou do meu trabalho, como também minou minha autoestima, cheguei em 2017 com zero confiança em mim mesma. Precisava escrever, afinal qual escritor fica por meses com páginas e mais páginas no Word em branco, não é mesmo? Porém, por mais que eu tentasse, eram palavras enfileiradas que não diziam nada, não transmitiam sentimento, muito esforço que não me levava a lugar algum. Tentei curar esse buraco dentro de mim em curso de escrita criativa. Um curso excelente, diga-se de passagem, mas que em nada me ajudou a sair do poço que eu havia alcançado. Recebi muito puxão de orelha da professora da época, sem qualquer sucesso. Na verdade, apenas agigantou a culpa e a vergonha pelo ofício não exercido.

Entrei em uma crise existencial que demorou muito para ser resolvida (e desconfio de que tenha sido por completo). Se tirava a escrita de mim, sobrava o quê? Eu era uma designer fracassada, uma revisora mediana e, até então, uma escritora que não escrevia. Me vi em um estado de não-pertencimento, de não-lugar, muito motivado pelos erros cometidos com Fisheye, pelas pessoas ao meu redor que, à primeira oportunidade, retiravam o valor do livro. E a história do meu trio romântico, por mais que eu tentasse, seguiu sendo apenas um amontoado de ideias em papéis.

Até a chegada de um fator: o ano de 2020.

Pandemia e uma Fortaleza difícil de acessar

Press enter or click to view image in full size
Foto: Tainá Cavalcante

Ainda me lembro da data em que tudo fechou em Fortaleza. Era 20 de março, nossas saídas se tornaram restritas apenas ao essencial, às idas ao mercado e à farmácia. As ruas ficaram vazias como em pós-feriado, e dava para escutar o barulho das sirenes das ambulâncias ao longe, em uma frequência pouco habitual.

A pandemia ressurgiu alguns medos em mim, como partir desse mundo com uma lista de pendências. Morrer fracassada. Ser esquecida. Experiências muito humanas. Voltei a desenhar, mesmo com um traço todo torto e zero segurança sobre o papel. Ligava para meus amigos e passava horas em videochamadas. Li bastante, talvez um pouco mais do que minha média anual. E, de alguma forma, resgatei os papéis e as ideias que me levaram às tardes me balançado na rede, quando a voz de Eddie Vedder me conduzia a histórias de pessoas com quem eu jamais cruzaria na rua.

Não sei também como reuni minhas amizades mais próximas, que me acompanham há tanto tempo, ao redor das palavras que eu desejava compartilhar. Existia esse arquivo do Google Drive, onde eu subia os textos no formato de capítulos. Logo em seguida minhas mensagens chegavam para elas pelo WhatsApp: “ei, te prepara, viu?” Os retornos que recebi, que vinham no formato de áudios entusiasmados e textos ainda mais eufóricos, me davam a centelha que mais de mil reais em curso de escrita criativa não deu. Em casa, sem poder abraçar quem sempre me foi caro, eu sentia o afago das minhas amizades através desse contato que era frequente, apaixonado. Nunca esqueci, por exemplo, o que minha amiga Amanda Fontenele disse a respeito da história que passei a chamar de EQB, redução para as iniciais do título: “eu consigo viver Fortaleza”. Era o cheiro do Bairro do Benfica que atravessava a tela do computador e chegava nas casas delas. Era um mínimo de sanidade e afago no meio do mar de caos.

O que demorou três anos para ficar pronto foi concluído em três meses. No fim, não era de técnica que eu precisava: era de comunidade.

Uma demissão, um FGTS e um objetivo

Press enter or click to view image in full size
Foto: Tainá Cavalcante

O último ponto final do primeiro rascunho de Entre quadros e balões foi posto no final de 2020, vindo de uma fonte que não via jorro de palavras tão intenso há muito tempo. De 2021 até o início deste ano, 2024, trabalhei ativamente no texto, indo e voltando muitas vezes, dando pausas longas quando me sentia sobrecarregada pelo meu próprio perfeccionismo e, por que não dizer, pela autocobrança que triplicou após as péssimas experiências com Fisheye. Tive altos e baixos, e muito mais decaídas do que momentos de confiança em meu próprio trabalho, ensaiando despedidas algumas vezes.

O que me salva é a teimosia, o eterno medo do fracasso, do viver com gosto amargo por aquilo que se deixou passar. Mas, para que Entre quadros e balões se tornasse, de fato, uma realidade, precisei enfrentar outro tipo de sabor, ainda mais azedo ao paladar: uma demissão e a incerteza de conseguir um novo emprego. O mar de negativas que afogava minha caixa de e-mails por meses me conduziu a abismos desconhecidos, e a desesperança flertava comigo com mais intensidade a cada recusa que não explicava o motivo para a dispensa. Textos padronizados, automáticos, disparados a mim e a outros tantos, moíam uma autoestima já fadada a quedas. Em algum momento, compartilhei esse sentimento profundo de desalento com meu companheiro: “se não tenho emprego e não tenho apoio na literatura, tenho o que para me apoiar?” Ao que ele me respondeu: “pega parte do seu FGTS e roda seu livro.”

Meu humor, que não andava dos melhores, mudou no momento em que contratei o serviço de print on demand, responsável por colocar EQB em diferentes marketplaces. Mais do que a realização de um sonho, EQB tinha fins de portfólio também, já que eu assinava a diagramação — com o pen name de designer. Era um trabalho que abraçava muitas frentes, que me dava algum estímulo para acordar, mesmo diante de recusas de departamentos de RH que sequer colocavam suas IAs para escreverem o meu nome no e-mail. Era dar um sentido ao dinheiro que chegou à minha conta bancária sob o crivo da humilhação da dispensa, do momento em que meu ex-gestor elencou tantas falhas em mim, incluindo uma inteligência incompatível aos seus ditames. Um misto de suor, muitas lágrimas e tentativas de transformar significados.

Já disse neste texto e torno a repetir que não sou grata à empresa que me empurrou uma carta de desligamento. Seria hipócrita da minha parte redigir agradecimentos após tantas lágrimas salgarem meu rosto, ou após a culpa ter conversado comigo por tantos dias. Entre quadros e balões não saiu porque fui demitida, mas porque eu precisava de um norte depois de tantas portas trancadas. É o que me dá motivo para saber em quais mesas posso estar e em quais momentos é hora de partir. É um reforço à autoestima após passar por tanto moedor. Olha o que eu consigo fazer, caralho.

O futuro

Press enter or click to view image in full size
Foto: Tainá Cavalcante

Não há bloqueios criativos por aqui, o que se evidencia pelo volume de textos que tenho acumulado neste modesto espaço há alguns meses. E por não haver bloqueio, posso dizer que tenho três projetos na ponta da agulha: dois que não são surpresa para ninguém que me acompanha por esta rede, e um que é para aqueles que gostam de folhas velhas amontoadas no chão.

Também não tenho uma linda lição de moral. A jornada com Entre quadros e balões foi árdua, construída em cima de coração partido, decepção e desemprego. Mas vislumbro muitas coisas verdadeiramente lindas para os próximos dias. E para as próximas páginas.

A era EQB começou.

--

--

Kami Girão
Kami Girão

Written by Kami Girão

Designer, escritora, crocheteira. Não necessariamente nessa ordem. Portfólio: https://www.kamigirao.com

No responses yet