Cascuda
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Diego perguntou se eu achava que não andava “cascuda” demais. Soltou essa por um motivo, quando falei que me surpreendi com um dos chefes que tive me pedindo desculpas pela quantidade de alterações que exigia em uma peça que eu estava fazendo. Na minha experiência no Design Gráfico, o vai e volta de peças é corriqueiro, um atributo da função; ouvir desculpas em palavras gentis, não.
Em nossas conversas rotineiras sobre ofícios, reclamo continuamente da decisão que tomei aos vinte, convicta de que meu destino seria trabalhar com criatividade. Criar sempre foi traço importante e fundamental para mim, e meu apreço pela estética, muito mais do que tornar a palavra a fonte primordial de renda, me direcionou a uma profissão em que acreditei, de olhos muito bem fechados, ter liberdade para colocar no mundo um pouco da minha própria interpretação das coisas.
Não que tenha durado muito. O dever de casa me ensinou em pouco tempo que designer gráfico, se não está em escritório montado por investimento próprio, tem pouca voz. É criatura vista com o rigor de máquina, cuja função é clara e simples, muito simples. Aprendi com uma das melhores, A. L. M, bastante elegante e simpática, de nome tão marcado na memória quanto a vez em que se curvou sobre a minha mesa para questionar desde quando a profissão de designer gráfico existia. Sem saber o que responder, tirei Gutenberg da cova para usar seus ossos de escudo. Citei a prensa, mesmo sabendo que monges copistas já faziam um trabalho que ficava ali, na escala cinzenta entre arte e função. A. L. M. não se contentou. Nem com a humilhação daquele dia e nem com as outras, me fazendo chorar repetidas vezes naquelas divisórias de vidro em que todo mundo conseguia acompanhar o curso das minhas lágrimas. Ou mesmo quando ensinou, em tom de voz professoral, que eu precisava ir ao banheiro avisando com antecedência aos meus colegas o destino e ignorando que o corpo tem seus próprios sinais. “Não tenho domínio sobre meu útero”, respondi com os nervos à flor da pele, e ela ecoou para os setores dado tão íntimo meu. Para que a Comunicação também estivesse ciente sobre o sangue, as dores, o controle que até tenta vir de fora, porém faz estrago a partir das tripas.
Guardo algumas iniciais dessas no coração. Me disseram que não era bom levar rancores tão ao pé da letra, que perdão era algo que deus se apraz, escrito em livros que não atendem as dinâmicas dos escritórios. Em um caderno de páginas amarelas, pensando em projetos onde pudesse enumerar as palavras ferinas que me lembro como a tabuada da multiplicação, forçadamente aprendida sob o jugo de lágrimas e chineladas, anotei situações e frases, ranqueando os níveis de perversão. “Acontece com todo mundo”, me dizem. “Todo mundo passa por isso”, repetem. Resignar-se à crueldade é estratégia; “entrar por um ouvido e sair pelo outro”, um mantra. Entra, mas não sai. Ancora. Me faz pensar “vou me dedicar para quê?”, enquanto pergunto a quem me demanda o que deseja, explicado nos pormenores, detalhes que me garantam previamente antisséptico, esparadrapo, gazes. “Use sua criatividade”, ordenam aos risos. Não é ela que querem. Precisam de mãos, dedos ágeis para entregar. Jamais leis de usabilidade, princípios básicos do design, teorias da cor, heurísticas, Gestalt.
Tem designer que sonha com autonomia. J. Dakota Brown escreveu sobre isso, sobre manifestos que se renovam em punhado de anos, exigindo muito, embora pouco questionando. Afirma: “Nós deveríamos, em geral, cultivar uma curiosidade genuína sobre o que está acontecendo conosco, em vez de depender de uma sabedoria autoindulgente que nos retrata como fabricantes da realidade.” Em uma série de encontros sobre Design que aconteceram na minha cidade, perguntei à professora que exibia um projeto lindo, muito lindo, um desconforto que encontro nas minhas anotações em post-it rosa neon: “tou adorando o assunto, mas o que me incomoda é: como ser empregada trabalhando com isso?”. Logo embaixo, anotei “fazer parcerias, editais”. Em outro, um decreto: “o design não é mercado!”, o que acredito ter sido a resposta recebida. Não é o que J. Dakota Brown explica em seu ensaio. É mercadoria, sim. “Os designers tentaram, na força de vontade, reinventar-se como teóricos e críticos. Mas uma vez a trabalho, eles estão limitados por forças sociais sobre as quais têm pouco controle — e que demonstram, infelizmente, pouco interesse em compreender.”
Bel disse que mexi com o ego dessa professora, que desmontei uma palestra em uma única pergunta, em conversa que rolava no meio da tarde de dia útil, longe dos ouvidos de quem tira o sustento disso. De quem, como eu, precisa ter a inteligência questionada em “feedback” de demissão, que é ordenado a refazer o caminho por onde entrou para saber a qual setor pertence efetivamente, cuja saúde física e mental é questionada em tom provocativo, repetido em expressão cruel, corriqueira: “tem caroço nesse angu.”
“Onde foi que eu errei?” — pergunto incansavelmente em notas de rodapé em meus cadernos, em post-its coloridos, em passagens extensas no diário. O caminho, penso olhando minha própria letra, sentindo cascos ao redor dos pés, antolhos no lugar dos óculos. Em minha parede, há uma bandeira com o dizer de Raoul Vaneigem: a obrigação de produzir aliena a paixão de criar. Nunca foi sobre criar, entendi quando assinei meu primeiro contrato, um dado para ilustrar livreto azul de tão pouco valor. Mas sempre foi sobre reproduzir.