Boa Maria faz
Nunca cheguei bêbada em casa. A ideia de não ter controle sobre mim, o inconsciente agindo de olhos abertos, me aterrorizava mais do que o gosto amargo de uma cerveja sobre a língua. Em seguida, o pânico de vomitar, fobia que me afastou não apenas dos porres, mas também de transtornos que começam com reflexos no espelho. Nunca fui má filha porque nunca tive oportunidade para sê-lo.
Em casa, hoje, não há mãos que segurem meus cabelos se, acaso necessário for, eu precisar me debruçar sobre a porcelana do sanitário. Tive acesso a esse direito por pouco tempo, e não cruzei muitos limites nesse período em que temia figura tão menor que eu, que se sentia livre para investigar páginas que eu destinava apenas a meus próprios planos.
Jamais pus um cigarro na boca, e sequer consigo diferenciar cheiro de fumaça comum de queimas mais atraentes. Conto nos dedos de uma mão as vezes em que saí escondida, a ansiedade, minha algoz e metrônomo, guiando meus passos para que eu não entrasse nas inevitáveis armadilhas dos dezoito anos. Permaneci inviolada, ainda que visitas médicas fossem recorrentes para reafirmar a boa saúde e a confirmação da pureza entre as penas, que desconheciam os segredos de outros corpos – nem dedos de rapazes, nem os meus próprios.
Não atravessei noites fora de casa, vivendo experiências que cartilhas orais ditam por aí como básicas. Fui, sim, uma boa filha. Sacrifiquei meu corpo, pele, estômago e cabeça para que ninguém lidasse com a frustração dos meus primeiros fracassos. Namorei na sala de casa, enquanto sonhava com o quarto trancado, intimidades que eu só costurava antes de dormir, de olhos fechados e pernas bem cruzadas.
Fui boa filha. Não tive boletim vermelho, que nada serviu para me assegurar vaga em lugares que me coubessem. Não ia para festas porque não gostava delas, do barulho, da multidão, dos corpos unidos, do suor, da falta de ar. “Boa romaria faz quem em sua casa está em paz”. Aos meus ouvidos, o ditado chegou como “Boa Maria faz quem em sua santa casa está em paz”, repetido à exaustão todas as vezes que via minha tia e meu primo saírem, eu tomando consciência de que não ocuparia lugar no banco detrás do carro, com eles. Me fiz, então, dessa Maria evocada pela minha avó, reservando-me a espaços pequenos, silenciosos, controlados, enquanto sonhava com cidades distantes, fuso-horários contrários, flores de cerejeira.
E, acima de tudo, fui preparada para ser essa boa filha, a quem mão alguma segura os cabelos na hora da ressaca. Boas filhas são reservadas ao lar. Nem todas, porém, têm o direito de permanecer em cômodos vazios.
